quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

MINICONTO: ITENS PESSOAIS

Minha filha não desgrudava da sua mochila, ela a levava para tudo quanto é lado. No começo eu achei engraçado, mas quando ela começou a conversar com a mochila e a alimentá-la, eu me dei conta de algo estava errado. Esperei ela dormir, a mochila estava envolta por seus braços, um fedor fraco se fazia presente. Eu peguei a mochila com cuidado, o peso dela me espantou. Eu abri a mochila e, para o meu total pavor, dentro dela havia a cabeça em decomposição de outra criança.

domingo, 24 de janeiro de 2021

POESIA - CHUVAS DE JANEIRO

 
Eu queria que em algum momento eu tivesse

Dito as palavras que amarram dois corações,

Que geram uma ligação que brilha sob o sol.

Estúpido, eu me fiz no silêncio da ausência

E o nada tratou de compor dois estranhos.

Passado o momento nunca vivido só idealizado,

Restou-me atado à distância as chuvas de janeiro.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

MINICONTO: AOS QUE ZELAM

 

A mulher gritava no meio da rua pedindo socorro, ela já foi me puxando para dentro da sua casa, explicando que havia um problema. Uma adolescente dormia na sala em meio à confusão. O cheiro de fumaça impregnava o ar. Na cozinha uma panela de óleo fervente estava em chamas, as labaredas incendiavam o pano de prato. Certeiro, eu dei o meu jeito e apaguei o fogo. A garota surgiu assustada na cozinha, creio que sua mãe a despertou. Vendo toda a situação seus olhos encheram-se de lágrimas, e então, ela olhou para o alto, fechou os olhos e sussurrou: “Obrigada, mãe.”

sábado, 16 de janeiro de 2021

POESIA - LAVANDA - THIAGO LUCARINI

 
Os lençóis ainda têm o cheiro de lavanda

Retido nos poros macios da sua ausência.

É uma fragrância frágil que me rouba, já que não sou forte nas noites, e que me faz regar

As flores bordadas, fazendo-as exalar a falta de um jardim em mim.

Levanto-me como uma abelha sem ferrão e voo baixo pelo quarto, abraçado a lençóis de lavanda,

Envolto em flores falsas, velando por um amor que nunca mais terei.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

POESIA : O HOMEM QUE BANHA O MORTO - THIAGO LUCARINI

 O que pensa o homem que banha o morto?

O que pensa o morto que é banhado pelo homem?

Que segredos trocam? Que palavras compartilham?

 

Precisa o morto de tamanha vaidade?

Ser limpo e vestido com tamanha elegância?

(Será tudo isso coisa do homem, do morto

 

Ou pura exigência da fria sepultura?!)

Sepultura que só guarda em teu útero estéril

Coisas limpas e bem vestidas, afinal, dela

 

Não nasce nada, nem morto nem alma.

Não importa a razão final das coisas

Tudo é cíclico, hoje, o homem vivo

 

Banha o morto do momento, daqui a pouco,

Será outro morto, depois, o homem que banha

Será o próprio morto e outro homem vivo o banhará.

POESIA - FERIDA - THIAGO LUCARINI

 

Há uma ferida em mim

Que não é exposta

Nem mesmo está na superfície da pele,

Eu sequer posso vê-la,

No entanto, sinto a sua presença

Às vezes mais forte às vezes mais fraca,

Nunca ausente.

É, certamente, um deus deste corpo,

E como um deus

Um dia ela irá me levar.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

MINICONTO: AO REDOR - THIAGO LUCARINI

 

Meu pai sempre teve dificuldades de entender certas coisas. Eu queria que ele entendesse qual é o seu lugar, que respeitasse o meu espaço, que não invadisse os limites da minha casa, o limiar da minha vida. Hoje, meu pai me observa à margem, e eu tenho a ciência de que foi uma péssima ideia, enterrá-lo na garagem.

MINICONTO: MANDANTE - THIAGO LUCARINI

 

A foto do morto chegou via um grupo de amigos. O homem tinha acabado de ser assassinado numa feira livre, preservado para sempre num último instante de pavor e dor. Assim, que eu vi a foto imediatamente a apaguei. Estranhei quando na manhã seguinte a foto reapareceu, pensando ser um erro de backup, exclui a foto outra vez, mas sempre que eu pegava o celular lá estava a foto no meu protetor de tela, não adiantava apagar, reiniciar. Troquei de celular e não resolveu. Por vezes, olho de relance para o aparelho e vejo que o morto, meu ex, ainda me observa.

MINICONTO: LIGAÇÃO PARENTAL - THIAGO LUCARINI

 

Desde pequena minha filha tem problemas para dormir, assim que começou a falar, dizia: “bicho, bicho” apontando para o canto do quarto, quando eu a colocava no berço. De acordo com que ela foi crescendo, passou a descrever o “bicho” como um ser grande, escuro e disforme, que dizia para ela desistir da sua vida. Eu nunca a consolei, pois aquilo que ela via, era a representação do meu ódio, eu detestava minha filha e todas as noites eu pedia para as forças malditas que a levassem.


MINICONTO: CONJURAÇÃO - THIAGO LUCARINI

Ela encontrou num sebo um livro com uma capa estranhamente ressequida e enrugada, cheia de glifos desconhecidos. Folheou algumas páginas e parou em uma onde havia uma estrela de cinco pontas invertida. Sem pretensão, começou a ler as palavras ali escritas. Antes de terminar a leitura, sentiu um fedor insuportável de ovo podre, e assim que fechou o livro, deparou-se com um homem encantador diante dela, não deixou de reparar que no lugar dos seus pés haviam cascos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

MINICONTO: OBRA ARTÍSTICA - THIAGO LUCARINI

 

        Suas tatuagens coçavam, elas não eram recentes, fator que tornava a coceira descabida. Notou uma vermelhidão ao redor dos vários desenhos, pensou que poderia ser uma reação alérgica tardia. Tudo o que fez para aliviar o incômodo não adiantou. Estava a caminho do hospital quando freou o seu carro de súbito, seus gritos de horror logo se fizeram audíveis. Todo o seu corpo doía insuportavelmente, pois fissuras se abriam por toda a sua pele, suas tatuagens rasgavam sua derme, saltando do corpo, deixando buracos enormes, ganhando vida a partir do seu sangue e carne violada.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

MINICONTO: A MÃO - THIAGO LUCARINI

 

        Acordei com o peso de uma mão apalpando meus pés, ainda sonolento, percebi que ela ia subindo, pensei que fosse minha mãe querendo me acordar, porém num insight me lembrei que meus pais haviam viajado e que eu estava sozinho em casa. E assim que eu me dei conta da situação, a mão agarrou meu pescoço e começou a me enforcar. Me debatendo e com muito alcancei meu celular, a luz de tela iluminou o quarto, e eu ainda ofegante, vi uma mão carcomida sumir por entre as cobertas.