quarta-feira, 26 de junho de 2019

CRÔNICA - DISTOPIA MATRIMONIAL - THIAGO LUCARINI



Ela não sabia exatamente quando o seu casamento azedou. O tempo não tem piedade nem os homens. No pueril início, não havia flor que murchasse, sorriso que não se abrisse, desejo que não ardesse, estrela que não brilhasse. Ele mudou. Esqueceu-se das rotinas do amor e caiu nas rotinas lodosas diárias, daquelas que matam possibilidades e afetos. Desapareceram os beijos de bom dia, ligações ao meio-dia, o toque espontâneo, a procura a partir da necessidade da carne, casualidades. Em vã tentativa, ainda dividiam “eu te amos” ditos ao vento mais por convenção que convicção. Ela se viu acorrentada a uma união de um só, e insistiu até dar-se por vencida e render-se a mesmice. Acabou presa à rede da rotina corroída por dentro, envenenando-se ao tentar entender o porquê da mudança, nunca soube.
Não a traia, por sorte, não era gay. Só era um homem de plástico, estéril nas relações.
A vida tornou-se dilatada, feita de compromissos obrigatórios e enfadonhos. Não existia felicidade, apenas comodismo, desgraçada estabilidade. Ele a renegou à castidade de mãe, a negou a puta entre quatros paredes. Beijava-a feito filha e estendia-lhe a mão em público pelas aparências menores, mas em casa, a esquecia, nada de cuidados maiores. Por sua vez, ela já não se importava em tirar o cheiro de cebola ou de outros suados condimentos, pois por mais temperada que estivesse, ele quase não a comia, e quando, pela obrigatoriedade nupcial mensal cedia o pau a boceta, gozava rápido, já que estava sempre cansado e precisava trabalhar cedo no outro dia. Era trabalhador, de fato. Este era um dos maiores erro dele: acreditar que ter a mesa cheia era o suficiente, prover o básico não alicerça cumplicidade, confiança, loucura abissal. Existem outras fomes, tão maiores e violentas, quanto à fome do corpo. Esquecia ele que um coração relegado ao vazio igualmente derrubava um lar.
Em algumas noites em orações frias, mas não de todo mentira, ela suplicava aos bons anjos que mandassem a morte a ele, e desse-lhe liberdade, quem sabe, nova vida. Ambiguamente, já não sabia viver sem ele e nem o suportava, mas como boa senhora e cristã, o respeitava, uma vez feitos os votos perpétuos. Achava indigno até tocar-se sozinha tendo um homem. Via as manhãs e tardes passarem tendo por companhia a solidão, durante a noite, lá também estava à solidão entre eles na cama, lugar de repouso e silêncio e não de amor.
Miúda, ela foi murchando à sua sombra ausente e ainda onipresente. Infalivelmente, ela era dele. Ele não dava sinais de compreensão da situação ou fez-se entender, ela orgulhosa não perguntaria ou confessaria a dor da intocabilidade. Nunca reclamou em sociedade nem a sós. Este fora seu erro. Ao outro, o silêncio pode significar paz e regularidade, aceitação.
Ele a amou pouco, ela ansiou demais. Eram planetas em órbitas opostas em que o alinhamento ocorre por poucas horas apenas uma única vez, e depois, seguem trajetórias separadas sem se lembrarem da gravidade de atração inicial.
 Ela desejava que ambos não pertencessem ao mesmo Céu, queria um Paraíso livre para si, sem ele, só ela. Refeita. Renascida sob outros signos mais alegres.
Covarde, viveu fiel ao seu tédio e amargor até o fim, por azar, se foram juntos, não se sabe se para lugares distintos ou iguais. O destino não permitiria tamanha afabilidade em irem desconexos como foram em vida.
Que Deus possa ceder grata separação aos infelizes. 

quinta-feira, 20 de junho de 2019

POESIA - LACUNA - THIAGO LUCARINI


Amei-te quando eu era escuro
Até que me fiz luz, estrela,
E pude enxergar o distante de ti.
Nunca foi recíproco, só cômoda
Gravitação. Fui queima, combustível.
Quando, enfim, houve claridade
Deixei de em vão te amar, pois tão somente
Encontrei eterno vazio, lacuna, ausência.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

POESIA - VENTRE DE VIDRO - THIAGO LUCARINI


Sou teu espelho
E a imagem que gero de ti
É perfeita,
Pois meu ventre de vidro
Preenche as lacunas do teu ego,
Materializa idealização no reflexo,
Negando a ti ranhuras básicas,
Humanidade.
Sou teu espelho, falho.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

POESIA - MARGINAL - THIAGO LUCARINI


Marginal meu olhar
Que ousou roubar-te
Para guardar no meu coração
E acender desejos não ditos
Que vão muito além da imaginação.
Marginal, margeio memórias
Deste meu eu ladrão sem perdão.