sábado, 31 de março de 2018

POESIA - UM QUARTETO PARA OS MORTOS TEGIRVESOS - THIAGO LUCARINI


— Eis um defunto nada humano,
que nem lembra um homem, se o foi,
e no qual nada mostra
se a morte doeu, ou dói.
João Cabral de Melo Neto

O morto cantou sua canção
Todos se espantaram com bendito ato.
Afinal, não se espera de um morto quase abstrato
Última façanha tamanha sem orientação.

Aos mortos é vedado qualquer sentimento
Devem velar o segredo da tenra morte.
O rosto deve ser liso, sem lágrimas, sem sorte
Aos mortos nada de cantos, palavras ou tormento.

Não podem, não devem jamais chorar,
Pois as lágrimas entregam tudo no ar.
Humano-morto, morto-humano, mortos todos nós.

Se a morte doeu, ou dói; os mortos não o devem dizer.
Para se descobrir é preciso, enfim, e solene morrer.
É só uma questão de tempo para a resposta se ter.

sexta-feira, 30 de março de 2018

POESIA - AS CERCAS BALANÇAM - THIAGO LUCARINI

As cercas balançam
Ante a chuva que se aproxima
Do tímido jardim em florada.
Não há nada para deter as águas
Que podem ser gentis ou obscuras
Na sua ira de tempestade intacta.
O Sol repousa atrás do luto do céu,
As cercas balançam, os insetos se escondem,
As flores se fecham em casulos idealizados
Com todas as suas fragilidades expostas.
Lá vem chuva indecifrável.

quinta-feira, 29 de março de 2018

POESIA - NÃO DEVE SER - THIAGO LUCARINI

No maquinar do destino
Algumas felicidades não devem ser
Não passar de sonhos idealizados,
Nunca imediatos ou concretizados,
Estão abaixo de possíveis rascunhos
Jamais devem estar nas proximidades de nós.
Alguns sorrisos não podem nascer,
Romper a fina linha dos lábios.
Nem toda alegria nos cabe
É a nossa cota de amargura, frustração,
De necessária contrariedade ante a vida.  

POESIA - POETAS E ABELHAS - THIAGO LUCARINI





Poetas e abelhas
São a mesma coisa!

Poetas e abelhas captam a essência
Das flores-coisas para frutificarem

O mundo. As abelhas operárias estéticas 
Sujam as céleres patas de pólen dourado,

Os poetas sujam as calejadas mãos
De macia tinta ou de fluente carvão.

Poetas e abelhas cruzam campos incertos 
E desertos atrás de uma singela flor-coisa.

São pequenos polinizadores de sonhos,
Úteis gigantes em sua imperceptível missão.

Poetas e abelhas usam listras como símbolo,
Uma armadura contra toda a secura dos dias.

Abelhas têm o ferrão por espada
Os poetas têm o lápis de imagético.

Poetas e abelhas estão constantemente zumbindo
Um hino de socorro na esperança de que alguém os escute.

Poetas e abelhas moldam colmeias-casas
Cheias de mel, mas que poucos se atrevem tocar.

Poetas e abelhas estão entrando em extinção, e ainda, sim, 
Teimam deliberadamente em não deixar a achada flor-coisa estéril,

Sem qualquer percepção do olhar alheio corriqueiro
Sempre apressado demais para poder ver o infinito no ínfimo.

Poetas e abelhas apesar da aridez e insensatez
Seguem seu voo de proselitismo frutífero-poético.

Poetas e abelhas
São a mesma coisa!

Poetas e abelhas
São a mesma coisa!

terça-feira, 27 de março de 2018

POESIA - ANTES ESCURO - THIAGO LUCARINI

O caminho é sempre escuro à frente
A luz só chega um passo por vez.
O adiante é mistério, desconhecido,
Trajeto não percorrido, ilusão feita,
Esperado destino. Estar às cegas
É amedrontador, mas também
É combustível, adrenalina, esperança.
O breu sempre antecedeu a luz
E é assim desde o início da jornada.
Antes ter a imprevisibilidade do escuro
A morrer de tédio na antecipação da claridade.

sábado, 24 de março de 2018

POESIA - O CAMINHO PERMANECE - THIAGO LUCARINI

Os rastros se apagam,
Mas o caminho permanece
Existe além de quem se vai.
Ela corre com o desespero
Da tempestade que se anuncia
Nos seus olhos plúmbeos e turvos.
Nada restará, nada salvará,
Por isso, ela corre feito vento,
Querendo se dissipar na linha
Do horizonte que se abre
Em bela e terrível incógnita.
Seus pés de Hermes seguem
Em contrária leveza esperada
Sem saberem o mapa ou razão
Sem velocidade suficiente.
Só o coração sabe e não confessa.
Não cabe as palavras questionarem
A história que contam ou o papel
Onde habitam, bastam-lhes ser e só.
Ela corre.

sexta-feira, 23 de março de 2018

POESIA - AS ESTRELAS CONTINUAM GIRANDO - THIAGO LUCARINI

As estrelas continuam girando
E não é efeito de ébria tontura.
O céu é carrossel encantado de astros
Meus olhos acompanham a valsa primal,
Seus rodopios no centro do universo.
Sob a força de luzes que nunca morrem
Vejo horas dormirem e acordarem.
Eu não durmo jamais, pois as estrelas
Continuam girando lá no alto, além,
Guiando meu tonto coração terreno.

POESIA - AMOR É RAIZ - THIAGO LUCARINI

Uma estrela que risca o céu
Como um dedo que marca a areia
Como o giz que imprime no quadro  
São estigmas passageiros e efêmeros.
Logo o céu volta ao intacto de si
A areia encobre a cicatriz exposta
E o quadro é legado ao nada liso.
Só o amor é raiz, impressão forte,
Sinal inapagável no tempo e nos homens.

quinta-feira, 22 de março de 2018

POESIA - ESTÉRIL LOUCURA - THIAGO LUCARINI

Se fujo de mim
É porque não me agrada
As terras que habito.
Meu cerne é útero ressequido
Há falta de fertilidade,
Escasso adubo e cuidado.
Meu interior é árido, seco,
Onde toda semente pousada
Sofre para ser algo, sofre
Na tentativa de sorrir ou florir
Sendo quase sempre botão abortado.
Chuva? Só de pedra enxuta.
Sou de estéril loucura cultivado.

segunda-feira, 19 de março de 2018

POESIA - GUARDAR IMENSIDÕES - THIAGO LUCARINI

O que vejo não cabe em mim.
É maior, expansivo, não retido
Indefinidamente pela retina.
Resta ao corpo ser pequeno,
Incapaz de guardar imensidões.
Por isso, escrevo, é a tentativa
De registrar no invisível das almas
O Grandioso alicerçado por palavras.

sábado, 17 de março de 2018

POESIA - FILHOS DE HEFESTO - THIAGO LUCARINI

Mecânica orgânica
Vida artificial messiânica
Sem líquido amniótico
Frutífera num meio abiótico.
Fios, tubos, conjuntos, sistemas,
Circuitos de ignição. Anunciação:
Autômatos livres de algemas
Existência sem consumação.
Um clique. Botão apertado
Inicia-se todo o aparato
De componentes metálicos.
Humano feito máquina mortífera
Coração de ferro, cérebro de placas
Descompasso ritmado pelas facas.
Nasce uma alma forjada por Hefesto.

quinta-feira, 15 de março de 2018

POESIA - BARRO MOLDADO - THIAGO LUCARINI

Há sempre algo que falta,
Pois o barro é incompleto.
Mesmo moldado carrega em si
Traços do vazio residual ao grão,
Da instabilidade da sua matéria
De só estar agregada se úmido,
Caso contrário é poeira solta,
Dispersa à desilusão e tantos outros.
Ansiando pouso da chuva, mão artesã
Para voltar a ser parte irrisória e divisível
De algo momentâneo e disfuncional.

sábado, 10 de março de 2018

POESIA - O ROSTO QUE ESCORREU - THIAGO LUCARINI

O rosto escorreu
Feito contas de areia
Numa cristalina ampulheta
Se juntado em suas mãos
Côncavas como uma tigela.
Ali, naqueles traços amparados
Nasceu uma flor, que olhou
Para o rosto vazio, inexpressivo  
E chorou sem achar reconhecimento.
Recuperada logo do susto, a flor
Decidiu ser um Caronte naquelas
Mãos-berço-jardim. O corpo seguiu
Sem rosto, livre de venenosas vaidades
E cheio de brilhantes possibilidades
Segurando seu novo guia, uma flor
Nascida dos vestígios do desfeito eu.

POESIA - DESPERTAR - THIAGO LUCARINI

Despertar-se oceano
É o milagre transitório
De toda brava gota 
Que cumpre seu ciclo. 
Viver plenos períodos 
É a consumação verdadeira 
De algumas eternidades. 

quinta-feira, 8 de março de 2018

POESIA - ALÉM DO ÓBVIO - THIAGO LUCARINI

mais do que curvas
mulher é nuance, enigma.
mais que peito e bunda
mulher é represa e sentimento.
mais do que fragilidade
mulher é desafio e procura.
mais do que desordem verbal
mulher é conjunção e poesia.
mais do que instabilidade
mulher é entrega e devoção.
homens podem até senti-las,
ter o toque, o gosto, porém
no conjunto da obra, mulher
sempre será um ser acima,
além do imaturo óbvio deles.
por fim, mais do que santa
mulher deve ser heresia.