segunda-feira, 27 de novembro de 2017

POESIA - DE DEUS A CAIM - THIAGO LUCARINI

Pois assim como é certo o amanhã
Cairãos dentes e tuas unhas
Desprovido de toda defesa humana
Quedar-te-á a mercê de todas as coisas vis,
Piores que ti, mas não terás qualquer fim.
A desgraça absoluta é permanecer sem paz
Na mira de outros predadores mais ferozes.
Tua cor será o hórrido vermelho e teu odor
A carniça perniciosa de sangue apodrecido.
Não reconhecerás nem tocarás qualquer
Mísero quilate de eterna ou divinal beleza.
Longe de tua cova de tempestades e ossos
Ficará ao relento dos sonhos, sob a maldição
Dos olhos das estrelas longevas, que não mais
Guiarão teu caminho de esplendor, mas, sim,
Levá-lo-á a escuridão e queda no abismo
Repetidamente, em ciclo, sem morte sem sentir,
Pois a partir deste momento, feito verdadeiro inferno,
Céu sem função a ti, meu silêncio é tua perene exclusão
E és maldito para todo sempre.

POESIA - TEMPO SOLVENTE - THIAGO LUCARINI

O tempo
É solvente
Dissolve a carne,
Duros pensamentos,
As flores, falsos amores,
Os dissabores.
Cabe ao tempo abrandar-nos
Desaglomerar-nos
Livrar-nos dos sedimentos.
Em sua mistura em trânsito
Somos agentes para diluição. 

sábado, 25 de novembro de 2017

POESIA - AS LAVADEIRAS - THIAGO LUCARINI

No cochicho indecente
Das etéreas águas virgens
As lavadeiras em ofício
Batem a roupa suja
Na dura pedra do curso
Amaciam a fibra
Removem as manchas
Exorcizam na água à espera
A alma do que foi usado.
Na ilusão do Sol forte
Sob efeito de gotículas dançantes
Ganham auréolas de arco-íris
Para sobreporem a fadiga do dia.
Ao terminarem a rotina têm
Braços cansados, cabelos molhados,
O canto dos dedos em frangalhos,
A santidade dada pelos calos,
E novo pecado a ser adquirido
Para mais tarde passar novamente
Pelo batismo alvejante das mãos
Das santas lavadeiras dos rios. 

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

POESIA - EQUIVALÊNCIA DOS INSTANTES - THIAGO LUCARINI

Tremem os segundos, os minutos e as horas
Ante a instabilidade do momento em trânsito.
Nada dura para sempre e a tentativa de repetir
Não é sinônimo de reviver o grandioso sentido.
O tempo apesar de duro e inflexível
Tem ossos de vidro, e por isso,
Não se sustenta fixo no pilar das prisões,
O peso da estagnação o faz correr ao infinito.
De duração simétrica ou equivalente
Passam-se os instantes e cabe a lembrança
Guardar o melhor e reaproveitá-lo sem reviver,
Porém impulsionando a insistência para o amanhã.
Ao tempo, pergunto: “Qual será o meu pedaço de fim
nestes instantes frementes e cheios de rumores
nascidos a cada despertar da alva alegórica?”

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

POESIA - CASUALIDADE DO CÉU - THIAGO LUCARINI

Como achar na humanidade
Um eco de legítima verdade
Quando tudo é imoto espelho
E toda casualidade nada mais é
Que ofício do destino inegável?
Nas escadarias de algumas grandezas
Não há paz no caminho
Nem flores se abrindo.
Cedo meu lugar ao Sol
A quem desejar, pois prefiro
Ficar à sombra do descanso à espera
Da abertura dos portões celestiais.
Não haverá Céu para o qual subir,
Mas, sim, Céu que descerá sobre
A cabeça dos coroados escolhidos.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

POESIA - PRIMEIRA LÁPIDE - THIAGO LUCARINI

Calei-me tantas vezes
Na noite pueril do meu coração
Que perdi todas as palavras de mim
Estas nada significam no leito morno do dia
Eram pedras imóveis, sem gosto, inanimadas,
Sem sopro, sem vida, um conjunto de nada mais.
Eram filhas da mudez, do despropósito de um ideal
Soterrado em apagamento e diminuição.
As palavras foram à primeira coisa essencial
Que morreu em mim, sendo a língua,
Igualmente minha primeira lápide metafórica. 

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

POESIA - CORAÇÃO DO DIA - THIAGO LUCARINI

Sangra o mês
Como quem sofreu
Ferida mortal.
É tempo de cair
E ir esgotando-se
Pelas marcas abertas
No seio do céu,
Negras, pesadas,
De sangue cristalino,
Límpido, a transferir
Vida aos terrenos vampiros
Sem mística ou noite
Sedentos de sede
No coração do dia
E cansados do período
Do céu curado. 

domingo, 19 de novembro de 2017

POESIA - INFINITO AMOR - THIAGO LUCARINI

Vem das montanhas altíssimas
Vales de ouros e prados de prata
Vem na bruma da manhã
Nas gotas de orvalho amanhecido.

— Nada é imune a ele: infinito, distinto amor —

Chega no aroma do café passado
Da comida preferida, da casa natal.
Vem a galopes em cavalos de fogo
Nas mãos de Deus e no coração humano.

— Nada é imune a ele: infinito, distinto amor —

Ele acaricia as pétalas das rosas, pérolas
O ciciar dos insetos, eternos, ó vida.
Saiu o gênio da garrafa, encantado
Poderoso, a fiar e governar, ó vida.

— Nada é imune a ele: infinito, distinto amor —

Imortal, essência de tudo:
Terra, fogo, ar e água, menino, velho, sábio
Combustão da alma, força de cada dia
Alegria divina, realização humana.

— Nada é imune a ele: infinito, distinto amor —

Cascata marfim de estrelas brilhantes despenca do céu da boca
O coração embebeda-se pleno, irradiado de luz e prazer
Do infinito amor, avalanche, a correr, feito rio
Banhando sonhos, humanos, a vida e Deus.

— Nada é imune a ele: infinito, distinto amor —

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

POESIA - FILHA DO SEU PRÓPRIO EU - THIAGO LUCARINI

O que chove de mim
Não chove de você
E certamente não chove de outros.
Cada nuvem plantada sobre o pescoço
É única, nem suas águas nem a queda são iguais.
Cada chuva é filha do seu próprio eu.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

POESIA - PÁLIDO HALO DE ÚLTIMA INSTÂNCIA - THIAGO LUCARINI

Invejo os mortos
Ali no caixão deitados
Tão pálidos e serenos
Sem culpa ou remorso.
Deixaram a vida
Não devendo nada a ela.
Perante a morte são eternos
Sem lágrimas sem dor
Pois tudo isso ficou aos vivos.
Nenhum morto é mau
Nenhum morto é bom
Nenhum morto é neutro.

Os mortos nada dizem
Nada condenam
Nada pedem.
Ah, os mortos vestidos de cova
São belos e enigmáticos
Coroa de flores
Pálido halo de última instância
Em breve auréola posta.

O morto no fundo de sua boca muda
Sorri, uma vez que, para ele
Não há mais tristeza
Somente a alegria da eternidade
Iniciada no cerrar dos olhos.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

POESIA - CEDER BILATERAL - THIAGO LUCARINI

Ceder é uma via de mão dupla.
Quando apenas um lado cede
Trata-se de estupidez, medo ou cega dependência.
Ceder deve ser um ato em benefício de dois ou mais,
Porém uma ação unilateral é tão somente negativa.
Ceder para calar não é ceder, é trégua
Ceder para evitar brigar não é ceder, é desistência
Ceder sonhos pessoais não é ceder, é morte do eu
Ceder só ao outro não é ceder, é burrice.
Ceder é para crescimento, nunca redução
Ceder é dividir o pão para matar a fome
É compartilhar a água para saciar a sede
É tornar tangíveis sonhos mútuos e íntimos
É somar as costas no carregar do peso do mundo
É doar o tempo mesmo nas distâncias e dores
É ramificar o amor para compor um jardim mais bonito.
Não há jardim que resista a poda coercitiva e abusiva
Ou flor que permaneça forte ante a seca da reciprocidade.
O vulgo “amor” que isola é cárcere
Ceder aqui é crime contra si
E com pena de solidão perpétua.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

POESIA - CONTEMPLAÇÃO DA DESGRAÇA - THIAGO LUCARINI

A contemplação da desgraça
Sobre o mundo é a tragédia
Nas pontas enferrujadas do tridente.
As lágrimas gritam espremidas
No sumo sacro do calvário.
Beber do milagre é tão somente
Para os fervorosos escolhidos
Achados entre orações e espinhos
Aos outros resta morte e ferro quente.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

POESIA - GUARDA-CHUVA DESIDRATADO - THIAGO LUCARINI

Estive de pé
Todo este tempo
Suportando os temporais.
O guarda-chuva secou
Feito velha flor.
Fiquei ao relento
Dia e noite, desidratando,
Bebendo água salgada,
Sendo regado pelo céu.
O caminho invariável
Continuou estéril e implacável
Sem se importar com a dor-farol
Cravada no meu peito.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

POESIA - A ENTIDADE DA IDENTIDADE - THIAGO LUCARINI

Olhar-se no espelho
E calar-se ante a aparição
Das mutabilidades do eu.
Bom mau feio bonito
Caridoso invejoso amoroso
Tantos outros, tudo sou.
A mim compete lapidar
Porém não extinguir de todo
É lícito e precioso ser vário.
Os olhos clamam agouro,
O corpo é fantasma exposto,
De carne e osso, nada translúcido.
A entidade que a identidade
Me oferece é variável, diária,
De doçuras e penúrias múltiplas
E o espelho é lápide sem epitáfio. 

terça-feira, 7 de novembro de 2017

POESIA - ÁRVORE TOMBADA - THIAGO LUCARINI

Fui ruindo
Por dentro.
Recolhi as folhas
Desisti das flores
Dos novos frutos
De ser outra semente
Abandonei os ninhos.
Restaram galhos secos
E ali permiti
Cupins comerem
Minhas raízes.
Assim, caí de joelhos
Aos prantos para ser carvão.

POESIA - QUANDO A NEVE CHEGAR - THIAGO LUCARINI

Quando, enfim, a neve
Sobre mim chegar
Terei eu alguém
Para me estender a mão?
Aplacar meus tremores?
Guiar-me além da baça visão?
Quando a neve chegar
Terei eu o verão de um sorriso?
Qual calor sustentará meu coração?

POESIA - QUANDO A NEVE CHEGAR - THIAGO LUCARINI

Criaturas de vida pequena não têm sono,
Pois o tempo é curto demais para sonhos.
A ilusão é medida por suspiros vividos,
Voos celestes, mergulhos inesquecíveis,
A cópula de continuação dos minutos,
Período de permanência sob a luz do sol ou da lua,
O toque de partida da chuva em deflagração. 

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

POESIA - VITRINE - THIAGO LUCARINI

Tantos sendo vitrine
Mercadoria no seu próprio
Mercado de solidão.
Vitrine é exposição
Mantida por vidro fraco
Por mera ilusão de posse
E o produto além das falhas,
Das muralhas de aceitação
Depois de um prazo
De uso aceitável
É descartado   
No lixo de si: vitrine.

POESIA - MASSA DE MODELAR - THIAGO LUCARINI

Quando meu corpo
Descer à sepultura
Pouse-o com ternura
Em respeito ao vivo
Que sob a luz fui
Em retribuição a alma,
Da qual, a morte me desligou.
A sete palmos na solidão do silêncio
Entre vermes e minhocas, minha carne
Sem habitante, enfim, voltará
A sua natureza primeira: pó.
Massa de modelar para outra vida.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

POESIA - O SONO E A MORTE - THIAGO LUCARINI


A Morte é irmã do Sono, não é?
Oscar Wilde

Pousa, o Sono, suas asas
Sobre o berço inicial.

Pousa, a Morte, suas asas
Sobre a barca do além inaugural.

O sono, por vezes,
Confunde-se com a morte.

O inverso também ocorre
Lapsos de memória da morte.

São amantes desde os primórdios.
Complementos universais, sacrais,

Não se sabe quem veio primeiro,
Porém é certo que estão a vagar

Pela face da vida desde sempre,
Sendo ambos destinação aos vivos.

A singular diferença entre Sono e Morte
É que o sono gera os sonhos; camafeus da vida.

E a morte, quase sempre, é um pesadelo
Em frios atos. Os mortos e os vivos dormem

Silenciosos, no embalo único, de cada qual.
Sono e Morte seguem sem qualquer descanso.