FOTO: Lucas da Cruz
— Eu te amo — sussurrou Bento, para Ana,
que ainda, estava no ventre de sua mãe.
A primogênita chegaria em breve ao
mundo. Ela fora gerada e esperada com muito amor. Bento segura a mão de Amanda,
sua esposa, gentilmente. Os dois entram no centro cirúrgico. Quando o choro do
bebê tão aguardado faz-se audível, lágrimas descem pelo rosto dos novos pais. Ana era a concretização dos sonhos do casal,
porém nem tudo são flores. A criança chegou com algo que não fora previsto. A
garotinha nasceu com uma estranha deformidade nos pés, eles eram curvos, de uma
forma, que os impossibilitava de permanecerem planos.
Amanda e Bento sofreram muito quando
descobriram que a filha não poderia ter uma vida livremente normal devido a sua
deficiência. Todavia, o sofrimento logo se transformou em luta. Ao completar um
ano de vida Ana fez uma pequena cirurgia apenas para melhorar a atrofia nos
pés. Entretanto, os médicos disseram ao casal que a menina jamais andaria
normalmente, que sempre dependeria de cadeira de rodas ou muletas. Após a
cirurgia, Ana passou a frequentar regularmente o hospital para fazer
fisioterapia. Bento e Amanda adaptaram toda a casa onde moravam. E desta forma
a vida fluiu.
Ana herdou os olhos azuis de sua avó
materna, Helena. Ela é uma menina extremamente inteligente e linda apesar de
sua deficiência. Seus pais incentivaram-lhe a leitura desde cedo, por isso Ana
amava ler, quando não estava com seus amigos de carne e osso, aventurava-se por
mundos distantes na companhia de amigos
invisíveis do coração, que é como chamava os personagens das estórias que lia.
Rapidamente a menina fez dez anos. Era
uma criança extraordinária de um forte senso crítico. Ana chegou do colégio,
cumprimentou a mãe que estava cozinha, e estranhamente neste dia não quis que
seu pai empurrasse sua cadeira de rodas até seu quarto. Ana subiu direto para
seu cantinho, porém não foi rápida o suficiente para que sua mãe não percebesse
sua tristeza.
Bento deixou-se cair no assento do seu
piano e, começou a dedilhar uma canção sua chamada “O jardineiro de estrelas”.
A melodia triste ecoou pela casa. A música do marido fora a confirmação de que
algo estava errado. Amanda enxugou as mãos num pano de prato e foi até a sala.
Amanda abraçou Bento por trás e lhe deu
um beijo no alto da cabeça. Bento continuou a tocar fazendo fluir pela música a
angústia em sua alma.
— O que aconteceu, meu amor? — perguntou
Amanda preocupada.
— Nossa filha, está triste — Bento não
parou de tocar —, uma colega de classe zombou mais uma vez do sonho dela.
Amanda sentiu um aperto no peito.
— O que devemos fazer?
Lágrimas brotaram nos olhos de ambos.
— Não sei Amanda, vou conversar um pouco
com ela. — A voz de Bento não era mais alta que a música.
Assim que entrou no seu quarto, Ana
jogou sua mochila num canto, saiu da cadeira de rodas e pegou suas muletas. Foi
direto para a cômoda onde ficavam os seus tesouros, e pegou o DVD de uma apresentação de O Lago dos Cisnes e o colocou para rodar.
Ana sentou-se em sua cama apoiando as muletas ao lado.
Logo a melodia invadiu o quarto e os
bailarinos apareceram no primeiro ato. Ana não queria chorar, mais foi
inevitável. O seu sonho de vida nunca se realizaria graças aos seus pés
retorcidos. Ela jamais seria uma bailarina, ela jamais encantaria alguém com
sua dança, ela nunca teria a sutileza do movimento, a única coisa que poderia
fazer era apreciar a distância o Ballet.
Ana lembrava-se perfeitamente da primeira
vez que Helena, sua avó, levou-a na apresentação de uma Companhia de Ballet chamada Plumas que esteve em sua
cidade, quando tinha três anos. Ela nunca esqueceu a beleza das bailarinas no
espetáculo A Bela Adormecida. De lá
para cá, passou a comprar DVDs de Ballet; possuía peças completas de O Quebra-Nozes, A Bela Adormecida, que foi a primeira peça que assistiu; Peter Pan, O Lago dos Cisnes, A Bela e a
Fera, La Bayadère, Coppélia entre outros. Ana apaixonada pela dança graciosa ainda via
apresentações no Youtube, pesquisava
e estudava sobre o Ballet, ela sempre
esperava ansiosamente os espetáculos em Inocência, sua cidade.
De acordo com o que Ana foi crescendo e
tomando consciência da sua condição, ela perguntava-se por que escolheu para si
um sonho tão difícil, apesar de saber que nada nunca seria fácil, pois seus
sonhos estavam destinados a serem limitados desde o dia em que nasceu.
Ana não culpava ninguém por seu estado.
Não culpava Deus ou os seus pais, aliás, ela acreditava que Deus havia sido bom com ela. A garota jamais poderia
reclamar dos pais ou da família que possuía, ela considerava sua deficiência apenas
um azar que a obrigou a amadurecer
muito rápido. Aos cinco anos já não acreditava mais em contos de fadas. Pois
desde a apresentação da Companhia Plumas, ela desejou uma fada madrinha para
mudar sua condição física. Fada madrinha esta que jamais chegou.
E naquela tediosa manhã quando, Nicole,
uma garota da sua sala, zombou dela, foi o estopim para uma avalanche de sentimentos
que Ana não gostava de ter. O ato de Nicole foi mais um balde de água gelada no
seu sonho. Ana encarou a TV. A bailarina foi erguida pelo bailarino, logo ela
pousou no chão com delicadeza na ponta dos pés, o tutu prato, o brilho; era
tudo tão lindo e mágico.
Ana com o auxílio das muletas levantou-se
da cama, pegou de dentro da sua mochila um pedaço de papel e caneta, e
escreveu. Escreveu tudo o que sentia a respeito de como devia ser uma
bailarina, suas lágrimas turvaram sua visão, mas continuou a escrever com seus
dedos delicados, ela jamais deixaria alguém dizer o que poderia ou não fazer.
Mesmo seus pés sendo inertes para o Ballet,
Ana treinava diariamente as posições de braço com afinco. Seus movimentos eram
graciosos e precisos. O seu coração possuía mil facetas, mil sentimentos e
carregava em seu cerne o amor incondicional pelo Ballet.
Depois de escrever tudo o que queria,
Ana leu o que escreveu e sentiu-se tão íntima daquele pedaço de papel que
continha suas palavras. Palavras que curavam a sua dor e que era um guia para o
futuro que desejava. A menina abraçou as palavras encarceradas no papel. Toc, toc. Ana saiu do seu devaneio.
— Pode entrar — disse ela, com sua voz
de sino embargada.
Bento entrou no quarto. Sua filha estava
sentada na cama, as muletas ao lado, abraçada a um pedaço de papel. Ele apenas encaminhou-se
até a filha e abraçou-a amorosamente.
— Pequenina — sussurrou calorosamente.
Ana amava seus pais imensamente, cada um,
de uma forma particular. Sua mãe era um exemplo a ser seguido de bondade e
carinho e, seu pai era o seu porto-seguro, o abraço dele tinha o poder de fazer
tudo parecer melhor. Ana chorou mais uma vez, molhando a camisa do pai. A
sinfonia entoada em O Lago dos Cisnes
na televisão deu a tudo um ar melancólico.
— Pequenina amada, eu juro que tudo
ficará bem. Eu e sua mãe estaremos sempre ao seu lado.
Ana apertou o rosto molhado ainda mais
contra seu pai. Ela sentiu de um jeito estranho que tudo daria certo. Depois de
desfazerem o abraço, Bento pediu para ver o que havia no papel em sua mão, ela
entregou seu pequeno tesouro ao pai, ele o leu e, seus olhos marejaram.
— É lindo, filha.
Um mês se passou e, foi anunciado na
rádio número um de Inocência, que a
famosa Companhia de Ballet Agrupar
faria um ciclo de apresentações por três dias na cidade. E que a emissora
estaria sorteando ingressos e uma visita a um ensaio fechado do grupo. Ana e
sua família escutaram a notícia no café da manhã de uma segunda-feira. Ana
sentiu seu coração pulsar mais forte no peito, trocou um olhar rápido com os
pais. Bento sabia exatamente o que devia fazer.
Bento levou Ana para a escola e despediu-se
da filha. Ele não era de correr enquanto dirigia, porém naquele dia ele correu.
Bento tinha pressa para chegar à sua casa. Assim que chegou, saiu correndo do carro
e ligou seu notebook, Bento entrou no
site da rádio, e mandou um e-mail contando toda a história de sua
filha e, ao final escreveu a poesia que Ana brilhantemente escreveu, a qual
decorou de tanto ler. Bento releu tudo o que digitou, estava tudo ótimo e então
clicou em enviar, mas antes disso pediu internamente a Deus com toda a força do
seu coração que o seu pedido fosse atendido.
Naquela mesma tarde o telefone de sua
casa tocou. Bento o atendeu e não acreditou no que ouviu.
Alguns dias depois Bento empurrava a
cadeira de rodas de sua filha, Amanda estava ao seu lado; eles entravam no
Teatro Municipal de Inocência. Todo o corpo de Ana tremia de emoção. Ela ainda
não acreditava que fora à sorteada para conhecer a Companhia Agrupar. Uma parte
do seu sonho ganhava forma e cor graças ao seu amado pai.
A história de vida de Ana emocionou toda
a equipe da rádio que decidiu que não havia outra pessoa mais merecedora do que
ela para conhecer a Companhia Agrupar. A sua história e poesia foram lidos ao
vivo dando uma notável repercussão ao caso.
Depois que passaram a entrada. Ana pôde
ver todo o corpo de baile da Companhia. Bailarinos estavam de um lado do palco
e bailarinas de outro. Todos permaneciam em posição perfeita. Os holofotes
faziam a pedraria nos tutus pratos e nos coletes dos bailarinos resplandecerem.
Bento aproximou-se do palco. Os olhos de Ana marejaram quando a música
inconfundível de O Lago dos Cisnes
começou a tocar e, o elenco dançou todo um ato. Aquela apresentação era exclusivamente
para Ana, pois o espetáculo daquela noite era outro, uma peça chamada Raios da
Alvorada. Quando tudo terminou Ana estava aos pés do palco aplaudindo arrebatada.
Uma bailarina desceu do palco e foi de encontro à menina.
A bailarina era linda, pele morena,
traços finos e perfeitos, cabelos impecavelmente penteados, maquiagem elegante
e delicada, ela usava meia calça branca, um tutu prato verde esmeralda bordado
com pedras em tom turquesa, uma tiara majestosa e sapatilhas de ponta.
FOTO: Lucas da Cruz
— Oi Ana, eu me chamo Sara. Saiba que é
um prazer conhecê-la — disse a bailarina com uma voz melodiosa.
Ana abraçou a bailarina abruptamente
tentando demonstrar toda a sua admiração.
— Oi Sara — balbuciou.
Ana limitou-se a dizer um simples oi, pois não encontrava suas palavras. A
beleza ofuscante do Ballet deixou-a
paralisada. Sua alma mais do que nunca tinha a certeza do que queria.
— Venha conhecer a todos — sugeriu Sara
gentilmente percebendo a emoção de Ana.
Bento com a ajuda de dois bailarinos
conduziu a filha ao centro do palco. Aquela altura, todos os bailarinos conheciam
a história de Ana e a admiravam. Muitos estavam emocionados. Sara que era a
primeira bailarina da Companhia, apresentou Ana a cada um dos componentes do
corpo do Ballet que era formado por
um total de 24 bailarinos. Ao final, uma senhora bastante elegante veio
cumprimentar Ana.
— Olá pequenina de coração gigantesco,
como vai? Eu sou Laíssa Von, a dona e coreógrafa deste grupo. É uma honra estar
na sua presença.
— É um prazer conhecê-la senhora.
— Creio que o prazer maior seja meu;
pequenina. Gostaria que recitasse sua poesia para nós.
— Sério? — o tom de voz de Ana possuía
leve espanto.
— Sério! — respondeu Laíssa com um
sorriso gentil.
Ana retirou do bolso de sua calça um
pedaço de papel amassado, o mesmo, no qual escreveu sua poesia entre lágrimas.
Bailarinas e bailarinos observaram-na, num instante, a voz de sinos da pequena
garota preencheu todo o teatro e os corações presentes:
“Coque, maquiagem,
tiara,
Tutu e
sapatilha de ponta,
A
bailarina prepara-se para encantar,
O reflexo
no espelho é o seu guia,
O palco é
o trono aonde é rainha soberana,
Bailarina
que traz no seu corpo,
A graça
sublime do movimento sutil,
Bailarina
que se move,
E move a
vida com alegria,
Alegre
bailarina que dança para as estrelas,
Que é
estrela,
E que
carrega a beleza da alma,
Nas
pontas dos seus pés.
Ao final do poema todos bateram palmas,
arrebatados. As bailarinas limparam lágrimas nos cantos dos olhos. Laíssa
abraçou a garota.
— Ana, você não tem ideia do quanto é
especial? — sorriso —, agora você irá assistir ao nosso ensaio para o show de logo mais.
Ana não cabia em si mesma de tanta
alegria. Os bailarinos saíram do palco para trocar de figurino. Bento levou Ana
empolgada para primeira fileira de assentos.
A menina acompanhou todo o ensaio, vendo
os bailarinos executarem passos como Plié,
Foutté, Coupé, Grand Jete, Sissone e Adágio. Passos que tão bem conhecia, entretanto Ana vibrou quando
os bailarinos ajoelharam-se e as bailarinas andaram nas pontas, indo à frente
deles e depois regressando ao ponto de partida. Laíssa estava sentada ao seu lado,
lhe dizendo que o bailarino representava a força e, a bailarina a delicadeza,
entre muitas outras coisas. Depois que o ensaio acabou; Ana fascinada
cumprimentou todo o elenco novamente, e por fim, despediu-se de Laíssa.
— Obrigada por tudo senhora — Ana estendeu
a mão para Laíssa que gentilmente a pegou.
— Isto não é tudo Ana. Temos uma
supressa pra você — a sábia mulher sorriu travessamente.
FOTO: Lucas da Cruz
O teatro estava lotado. Bento e Amanda
sentaram-se na primeira fila. A estória contada pelo Ballet na peça Raios da Alvorada; era a de uma princesa que fora
roubada recém-nascida de sua mãe, no seu lugar fora colocada a sobrinha de uma
feiticeira. O enredo contava todo o ciclo de superação da garota real que vai
parar numa aldeia, sem noção de sua nobreza, e que trabalha para ajudar o
orfanato aonde mora. Dona de uma beleza sublime, ela atrai a atenção de um
príncipe de outro reino, com o qual casa-se. Como brincadeira do destino seu
marido leva-a para conhecer o reino dos seus verdadeiros pais. A filha postiça
malvada e a feiticeira fazem de tudo para impedir a aproximação da princesa
legítima, mas tudo falha. E a rainha finalmente encontra a verdadeira filha e, prende
a farsante juntamente com seus cúmplices, assim a paz volta a reinar.
No ato final, a voz de Laíssa ecoa pelos
alto-falantes num anúncio. Ela relata que o final do renomado espetáculo fora
alterado devido à força de um bem
maior. No mesmo instante, Sara, a primeira bailarina, vai para a coxia, os
bailarinos posicionam-se formando um corredor entre si, eles seguram flores. Pétalas
de rosas começam a cair do alto do palco.
O
bailarino que faz o príncipe, Marcos, fica de pé em posição de reverência no
centro do corredor formado pelos outros bailarinos. Ele usava calça suplex
branca de cintura alta, camisa branca de tecido fluído que dava uniformidade e
longelineidade ao corpo dele, um colete azul turquesa bordado com pedraria
vermelha e fios em tons dourados e sapatilhas. Finalmente, Sara volta trazendo a princesa do
príncipe. Ana não cabia em si de tanta emoção.
Ela
estava em sua cadeira de rodas que havia sido toda enfeitada com flores, a
garota executou algumas posições de braço com uma precisão e delicadeza
magnânima. Ana dançava do seu jeito encantador. Dançando para si mesma, para os
espectadores e para os bailarinos. Assim que a veem, com exceção de Marcos, os
outros bailarinos homens e mulheres fazem uma abertura e curvam-se sobre a
perna direita, colocando a cabeça entre os braços, fazendo reverência,
reconhecendo a grandeza da bailarina que adentrava ao palco.
Os cabelos de Ana foram presos num coque
gracioso, sua maquiagem era simples e bela, ela usava um tutu romântico rosa
claro cheio de tule e renda, uma tiara com flores corava sua cabeça e as tão
sonhadas sapatilhas de ponta estavam nos seus pés retorcidos. Havia dado um pouco
de trabalho colocá-las. Ana não conseguiu apoiar os pés no chão para andar de
muletas com as sapatilhas, mas nada disso importava. Sara traz a princesa Ana
até o príncipe que beija sua testa. A bailarina se junta aos outros bailarinos
que dançam em volta de Marcos e de Ana.
A felicidade não poderia ser maior para
garotinha, seu sonho concretizava-se, Ana fazia parte de algo lindo e grandioso.
Ela vê seus pais emocionados; muitos dos presentes na plateia choravam. Ana não
se permitiu chorar, embora a vontade fosse imensa. Seu pequenino gigantesco
coração explodia dentro dela resplandecendo em seu sorriso inocente.
Os dançarinos formam um círculo
novamente em torno de Ana e do seu príncipe. E então, toda estória que
transcorreu sem nenhuma fala é quebrada com uma única fala em uníssono de todo
o corpo de Ballet:
“Alegre bailarina que dança para as estrelas,
Que é estrela,
E que carrega a beleza da alma,
Nas pontas dos seus pés.
Cessa a música. Todos no teatro aplaudem
de pé fervorosamente. Ana naquele instante mágico era a única bailarina no
mundo. Única, majestosa, soberana e perfeita. Rodeada de cores e brilho, sendo ela a estrela maior. Seu coração encheu-se
da mais pura felicidade. Felicidade que nem mesmo a plenitude dos tempos
poderia dar fim. Fecham-se as cortinas, acaba-se o ato.
fantastico!doce!e la me vejo presa na estoria...na emoçao dela!e,na promessa de que nao podemos deixar nossos sonhos de lado...
ResponderExcluirArrebatado pelo beleza e delicadeza! Pela forma brilhante com que este conto nos faz acreditar em nossos sonhos! É lindo! 😢😍
ResponderExcluirParabéns!