sexta-feira, 26 de agosto de 2016

POESIA - COISAS QUEBRADAS - THIAGO LUCARINI

Pouso final no pires
Píer de descarte da xícara
De asa quebrada

Sem outro voo à boca.
Filhote ferido de porcelana
Só chegará ao ninho dos lábios

Pela paciente solidariedade
De mãos em oração côncava,
Em favor, à adversidade.

Mas, pobre da xícara, na vida,
Não há paciência para as coisas quebradas,
Teu último abrigo certamente será o lixo.

Quem mandou quebrar sua asa,
Sua utilidade, e matar teu elegante voo
À boca que descaradamente a usou.

POESIA - MORTOS ELEITOS - THIAGO LUCARINI

No cemitério
Estava a ocorrer
Um rebuliço de morrer.

Os mortos queriam eleger
Um novo governante
Paras as almas andantes.

Numa mixórdia ideológica
Não chegavam nunca a um consenso.
Um morto queria ser melhor que o outro.

Os mortos lunáticos sem descanso e candidatos
Juravam não feder, não ficarem só parados apodrecendo,
Que seus cérebros não eram apenas uma torta de vermes.

Todavia, esqueciam-se que aonde o vento faz a curva
Nenhum algo cresce reto: homens, animais,
Plantas, sonhos, deuses, a morte, os mortos.

A ladainha discursiva durou uma parcela da eternidade, houveram debates,
Promessas, discursos de mudança da abulia, no fim, o morto mais maquiado
Fora eleito sem elegia, mas nada, nada mudou no cemitério de almas penadas,

Pois em suas essências os outros mortos votaram na ilusão,
Naquele morto que é o espelho de si; o presidente das almas
Deixadas está tão morto quanto os outros, sem fuga do sistema. 

POESIA - BOA NOITE - THIAGO LUCARINI

Boa noite, minha querida,
Não temas, pois esta é a noite derradeira, trégua,
Não se preocupe, não desperdiçarei mais lágrimas.

Boa noite, minha querida,
Lá fora, os corvos crocitam invisíveis na noite.
Aproveite bem, teus sonhos de estrelas mornas.

Boa noite, minha querida,
Eu continuo aqui, sem dormir,
Não tenhas medo, debaixo da terra não há bicho-papão.

Boa noite, minha querida,
Alivie na eternidade o teu primaveril cansaço,
Eu já não regarei a semente da noite que se fizeste.

Boa noite, minha querida,
Nunca poderei lhe desejar bons-dias, uma vez que,
Só levantam de suas camas, aqueles que permanecem vivos.

Boa noite, minha querida...
Boa noite, minha filha...
Descanse em paz.

poesia - hora morta - thiago lucarini

o relógio tem
suas horas mortas,
diferentemente de suas horas findadas.

é um tempo envolto em gelatinosa parafina
relógio frio de sangue coagulado, estagnado,
réptil esperando sol para mover suas articulações empedradas.

hora morta
é aquela cansada, arrastada,
que não passa nem a custo de reza brava.

teias invisíveis formam uma rígida mortalha
a segurar os ponteiros, engessando o avançar,
a descida da hora à sepultura dos sessenta.

são horas que tomaram para si
a sonolência opaca dos mortos imóveis
e suspiram seu tique-taque estático,

morosas, demoram, e quando,
de fato, deixam o relógio, para de vez, morrerem,
as novas horas correm leves, cheias de vida e alegria.   

POESIA - COLOSSOS CRISTALINOS - THIAGO LUCARINI

Estivemos por tempo demais
Erguendo castelos fiados em lágrimas.
Paremos, antes que, estes colossos cristalinos

Caíam sobre nós e faça-nos
Afogados no oceano que choramos.
Quero verão e estiagem para nossas vidas molhadas.

Chega de brigas, embates desnecessários.
Encontremos a paz, as flores, o mel,
A estabilidade de dias firmes e quentes.

Findemos as guerras. Eu hasteio bandeira branca,
Jogo a toalha, peço perdão dando o primeiro passo.
Só não quero mais depositar lágrimas frias em nós.

Vamos juntos derrubar estes castelos de lágrimas
Com união e amor, destruir este alicerce de desconfiança
E erguer um novo mundo de fundações sólidas e secas. 

POESIA - HORA TARDIA - THIAGO LUCARINI

O olho do farol que guia os marinheiros
nos lençóis da escuridão é completamente cego.
João Bernardo Hoffman

Fim de tarde
É a hora tardia da vida.

O sol vai se pondo
Os olhos descem, também, do seu zênite.

A noite vai chegando
O buraco da sepultura vai sendo aberto.

Logo a derradeira noite se instala.
É morte para o homem, fim dos dias.

A hora tardia é findada pelas pálidas estrelas.
Para o morto inicia um ciclo sem amanhecer. 

POESIA - CICATRIZES DO DEGELO - THIAGO LUCARINI

As cicatrizes crescem no gelo
Numa angiogênese estalante e trivial.
São teias de morte do lençol glacial.

As fissuras lentamente se espalham
Trincando o oceano liso, vítreo, dando rugas
A linearidade fria, a perfeição desfaz sua pele gelada.

Trovões surdos escoam sob o gelo frágil,
Quebra-se o inverno, é tempo de degelo.
As cicatrizes, ranhuras sem cura, mordem o frio.

O gelo sem futilidade perde sua majestade
E vai se desfazendo, se liquefazendo, devolvendo
As águas o bálsamo de o seu respirar, até o próximo inverno.

POESIA - PALHAÇO ABÚLICO - THIAGO LUCARINI

Este estranho estado de felicidade.
Destituído palhaço monocromático
Eu ganho sublimes cores e flutuo.

Deixo de ser estúpido abúlico.
E caio na vertigem de sorrir
O sorriso contido por toda uma vida.

Volto a ser palhaço público
De ressurrectos apetrechos de plástico
E dentes escancarados aos alheios tristes.

Volto ao picadeiro livre de toda apatia,
De toda melancolia, regresso a origem.
O Leão me deu sua juba de felicidade.

POESIA - AGOSTO ATÍPICO - THIAGO LUCARINI

Este olho do céu plúmbeo
Apagando os rastros do chão
Deste atípico agosto chuvoso.

Os lençóis deste céu de chumbo
Cansaram-se das cinzas e da poeira,
Da ventania quente e dos redemoinhos,

Desistiram da secura, da opacidade cinza
Das plantas, da vermelhidão agourenta da terra.
O céu de agosto chora remodelando suas concepções.

Chora o olho chumbo do céu
Chora agosto, enfim, mudado.
Saiu da mesmice ressequida para derramar-se.

Domingo, 21/08/016.

POESIA - DESPETALAR - THIAGO LUCARINI

Primeira pétala
“Bem me quer.

Segunda pétala
“Mal me quer.

Terceira pétala
“Bem me quer.

Quarta pétala
“Mal me quer.

Quinta pétala
“Bem me quer.

Sexta pétala
“Mal me quer.

Sétima pétala
“Bem me quer.

Oitava pétala
“Mal me quer.

Nona pétala
“Bem me quer.

Décima pétala
“Mal me quer.

E assim,
Desfez-se

A flor
E o amor.

POESIA - LEVE - THIAGO LUCARINI

Todas as coisas e corpos
Perderam a gravidade situacional
E planam a alguns passos acima do chão.

É o meu coração o responsável
Por dar esta leveza, tirar o peso
De todas as outras coisas e corpos,

Pois ele fora brindado de felicidade
Numa noite mágica. Ganhou leveza transmissível.
Ar, plumas, nuvens, eu, tudo, voamos.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

POESIA - ILUSÃO DESFEITA - THIAGO LUCARINI



O grão de terra
Com sua ilusão
De montanha desfeita

Sonha em incendiar-se
E virar bela estrela
No límpido céu de primavera

Ser uma giganta luminosa
Guia de homens e vaga-lumes,
Tão diferente desta poeira

Terrena, singular e descartável.
Anseia ser algo muito além
Desta restrita imensidão azul orbitante,

Além do raso chão deste planeta.
O grão de terra, pequenino,
Mas ambicioso, sonha sua ilusão

De montanha desfeita.
Porém o mais perto que chegará
Das alfombras do alto céu glorioso

Será a partir das gotas de chuva,
As mesmas insensíveis que desfizeram
Sua montanha materna e o transformou em grão.

Este grão no baixo chão,
Este grão à beira do caminho inútil,
Este grão iludido na senda da sarjeta.

POESIA - TROPEÇAM AS COISAS - THIAGO LUCARINI



Tropeçam os faróis caindo
No mar e afogando-se no sal.

As rosas cortam seus pulsos
Nos espinhos esvaindo-se do perfume.

As borboletas calejadas sacodem
Suas cores deixando-as no chão cinza.

Os pássaros com o último canto
Arrancaram suas asas, não querem mais voar.

As estrelas tombam na escuridão
Curto-circuito no Universo peculiar.

A chuva nega-se a cair
Vergando os pilares do céu.

Os prédios caem de joelhos
Revogando o riste imposto.

Os homens estouram seus sonhos
Feito bombas atômicas nos cérebros.

As orações regressam ao seu suspiro de origem
Negando veementemente consolo à alma.

A morte entediada e cansada entra em greve
Deixando aos vivos o azar da eternidade entre si.

É o fim! É o fim!
Mora a última esperança na inocência,

Pois cabe a esta dar candura
Aos olhos duros e desistentes.