quinta-feira, 9 de setembro de 2021

POESIA: O RELÓGIO DE PAPAI


O relógio de papai quebrou

Marca uma hora que jamais voltará.

Os ponteiros estáticos fizeram-se cruz

E a simbologia tardia das horas

Interrompidas é um lembrete

De agora em diante

Dos sorrisos que permaneceram enterrados

Num tempo fracionado por saudade.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

MINICONTO: AMOR-PRÓPRIO

        Naquele mundo as pessoas tinham dois corpos, um feminino e um masculino, porém a consciência só habitava um receptáculo por vez, para se evitar o amor-próprio, mas uma falha ocorreu e a mente de uma entidade se duplicou, os eus, feminino e masculino, não relataram o defeito, pois assim que se viram espelhados, se amaram perdidamente, passado um tempo, as avarias se apresentaram e os corpos sem conseguir manterem-se longe, mas igualmente, desviados da ordem, começaram a se mutilar, visto que o amor-próprio era extremamente danoso.

sábado, 15 de maio de 2021

MINICONTO: QUEM ESTAVA COMIGO?

 

            Luiza, minha melhor amiga, e eu, fomos em direção a porta de entrada, assim que encostei na maçaneta, ouvi uma voz familiar me chamar do lado de fora, abri a porta e qual não foi meu espanto ao ver que Luiza estava no portão. Olhei para o meu lado e eu estava sozinha em casa.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

MINICONTO: CATARRO

 

        Adão estava gripado há dias. Juntou todas as suas forças e escarrou um punhado de catarro verde que escorreu pela parede, repunou com o gosto esquisito que ficou na sua boca, mas seguiu o seu caminho. Deu alguns poucos passos, quando sentiu algo frio e pegajoso segurar sua perna esquerda, olhou para baixo e uma espécie de tentáculo verde o prendia no lugar. Virou-se e deu de cara com o amontoado de catarro que agora tinha o seu tamanho. Várias outras espécies de vinhas saltaram daquela aberração nojenta, agarrando Adão que estava em choque, até que dois tentáculos escancaram sua boca, e sem demora, aquilo começou a entrar dentro dele de novo, a sensação era horrível, o gosto era pior. Logo Adão estava sozinho novamente na rua, seu corpo inteiro tremia, seu estômago revirava de ânsia, ele achava que ia vomitar, e foi então que escutou: “Adão, você não quer passar por tudo de novo quer?” Dali para frente Adão teria que engolir tudo, quietinho.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

MEU NOVO E-BOOK: BRANQUELO

 

Os contos que compõe este e-book foram contados no Podcast, Siga a Luz. Alguns foram escritos há muito tempo, enquanto outros são bem recentes. Todos são especiais para mim de alguma forma, porém, Branquelo é aquele que julgo ser o mais necessário diante da sua mensagem.

O conto Branquelo foi escrito em 2020, durante os protestos, Black Lives Matter, em repúdio as mortes de George Floyd, Breonna Taylor, entre outros. Na época eu não quis publicá-lo, por achar que seria oportunismo da minha parte. O que foi um acerto, visto que, amadureci ainda mais o conto, além de, infelizmente, ter ocorrido, aqui no Brasil, o caso, João Alberto, na rede Carrefour. Eu acredito que, Branquelo, seja um dos meus contos mais importantes e é um texto com o qual eu realmente me emociono. Branquelo é a representação hedionda da violência vinda do Racismo Estrutural e da sociedade em que vivemos. O conto é uma ficção, mas nem de longe, deixa de ser irreal. Os horrores aqui descritos acontecem o tempo todo, todo dia e com pessoas reais, e cabe a nós, enquanto, sociedade, enquanto, humanos, a luta para mudar tais situações.

Contos presentes neste e-book:

Linhas. Agulhas. Ajuda na Estrada. Bem-vindos à Sussurro. Dia das Crianças. Senhora das águas. O Cadáver e o Abutre. Tudo O Que Vai, Volta. Hachinosu Akane. Consequências. O Poço. O Chinelos de Nelson. O Artista. Boneco de Vingança. Branquelo.

LINK PARA COMPRA

POESIA: CACOS

 

Às vezes tenho dó de mim

Não é vitimismo

Apenas penso que se eu soubesse

De algumas quedas antes

Muito de mim ainda estaria inteiro.

MINICONTO: DIABO ENTEDIADO


        — Ah não, caralho, de novo, não.

        O capeta não gostava mais de ser invocado, cansou dos mesmos pedidos mesquinhos.

        — Você quer uma vida de luxo e blá blá blá.

        O invocador ficou estático diante da reação indiferente do capiroto enxofrento.

        — Eu devo ter feito algo errado, você não pode ser o demônio, só pode ser uma farsa.

        Satanás riu em contínua fúria e com o seu tridente fumegante partiu o conjurador ao meio. Podia estar entediado pelas eras, mas o diabo ainda era o diabo.

MINICONTO: FOME

 

            Minha filha tinha um sério problema de não querer comer nada. Compramos um estimulante de apetite de uma senhora na rua e agora ela está comendo o nosso cachorro.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

POESIA: LINHA DO HORIZONTE

 

Meus dias começam

Como se fossem uma carta de despedida

Onde a única linha escrita

Diante dos meus olhos

É o horizonte em branco

Que revela todo o vazio

Daquilo que não está mais ao alcance.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

MINICONTO: NOVATO

 

        Dizem que era o seu primeiro dia no frigorífico, os outros funcionários não deram muita atenção a ele, quando na linha de higienização de carcaças de gado num momento de distração do novato, um gancho livre e afiado fincou em sua cabeça. O sangue jorrou. Teve morte instantânea. Toda a produção foi paralisada enquanto o IML não chegava, o corpo do novato ficou pendurado apenas como mais um pedaço de carne. Hoje não é raro alguém ver seu espectro passando pela linha de produção, pendurado num gancho, ensanguentado, a fitar o vazio.

POESIA: PERCEPÇÃO ERRADA

 

Falo das coisas como se não houve futuro

Minha visão do tempo é sempre passada.

Eu sei que a chuva de ontem não me molha,

Que o sol de antes já não me aquece,

Mas não consigo deixar de me perder

Na correnteza contrária,

Pois tenho a miséria de acreditar

Que respirava quando afogava.

POESIA: SOBRE AS HORAS

 

As horas mentem sobre aquilo que sinto,

Os ponteiros pensam que determinam

Cada batimento cada pensamento.

Determinado pelas horas

Cada uma é uma corda posta

No meu pescoço.

O tempo me consome,

Mas não sabe nada

Nada do que sinto.

POESIA: BRILHO

 

Minhas estrelas morreram

Quando deixaram de crer

Na força do próprio brilho.

A partir daí não havia luz

Que rompesse a escuridão

Que impuseram a si mesmas.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

POESIA - LEMBRANÇAS

(IMAGEM: TOMASZ ALEN KOPERA)


Há feridas que doem

Mesmo depois de muito tempo,

A cicatriz é um fantasma

Que lateja sua agonia.

A cura total é uma bênção,

Mas aquilo que morre

E não se vai completamente

É uma parte do inferno na Terra.

POESIA - AQUILO QUE FALTA

 

(IMAGEM: TOMASZ ALEN KOPERA)


Aquilo que me falta não me define

Nem me torna menor

Ou incapaz em algum aspecto.

Encaro a falta como uma oportunidade

Como um espaço para crescimento,

Pois aquilo que não tem espaço,

Acaba por morrer sufocado.

terça-feira, 23 de março de 2021

MINICONTO: QUARTO ESCURO

 

        O breu era total. Eu não enxergava um palmo a minha frente. Não havia nenhuma roupa sobre o meu corpo. Dou o primeiro passo para achar uma saída, mas piso em cacos de vidro, caio e o que suponho ser agulhas, perfuram toda a minha lateral. Por onde tateio, cuidadosamente, sinto itens cortantes. Em meio a dor, levanto-me e rasgo a minha bochecha numa ponta de vergalhão. Eu estava cercado por todos os lados por objetos pontiagudos e afiados, e potencialmente, mortis, no escuro total. Talvez, eu não conseguisse sair vivo, uma vez que, inteiro seria impossível.

sábado, 20 de março de 2021

POESIA - PASSOS CONTRÁRIOS

 

Os dias passam

Só eu não passo

Pois meus passos

Se fazem presentes no passado.

Estúpido, eu aprendi

Apenas a caminhar para trás.

Para querer um futuro

Preciso arrancar meus pés.

E hoje, feito de ontens.

Opto por não doer.

MINICONTO: INVASÃO

 
— 190 qual é a sua emergência?

— Socorro policial! Tem um homem tentando entrar na minha casa.

— Acalme-se senhora. Há um engano...

— Por favor, policial, mande ajuda, isso não é um trote. Tem um homem do lado de fora.

— O que eu quis dizer, senhora, é que eu estou dentro da sua casa e não do lado de fora.

quarta-feira, 17 de março de 2021

POESIA - SANGRAM OS PORTÕES

Há em mim

Um vazio construído

Pela ausência de palavras.

Nada significa os atos

O céu sangra de portões abertos

A noite sempre perde mais almas

E eu estou perdido

Sem achar minhas palavras.

São dias difíceis,

Terríveis.

segunda-feira, 15 de março de 2021

MINICONTO: FILHOTE

 

        O vento provocado pelo bater das asas daquela criatura quase me derrubou do seu ninho. Ela pousou sobre mim, arreganhou minha boca, enfiou seu bico até a metade da minha garganta e regurgitou aquela mistura espessa e nojenta dentro de mim. Eu contive a vontade de vomitar, pois caso o fizesse, teria que comer tudo aquilo de novo.

sábado, 13 de março de 2021

MINICONTO: BOCA DE VERMES

 

Eu ignorei o bafo de carniça, afinal, quem está na chuva é para se molhar. Sua língua entrou na minha boca como se fosse uma enguia gosmenta, havia um estranho gosto residual, ácido e podre feito lavagem de porco. De repente, senti algo dentro da minha boca, além da língua alheia, era como ter grãos de arroz inchados, escorregadios e peludos por toda parte. Enjoado, desfiz o beijo e cuspi na minha própria mão, e ali, em meio a saliva, um punhado de vermes se contorciam. Da outra boca, vermes caíam aos montes. Vomitei.

MINICONTO: RITUAL

Acordei de madrugada, minha cama havia sido arrastada para o meio do quatro, um círculo estava formado a minha volta, os seres eram mais escuros que o escuro e seus rostos estavam cobertos por máscaras marmóreas distorcidas. Uma chama se acendeu sobre minha cabeça, revelando totalmente aquelas aberrações. “Isso é só uma paralisia do sono! Isso é só um pesadelo! Acorda Isabela, acorda!” Eu repeti para o meu corpo inerte. Uma das criaturas levantou um punhal e o cravou no meu peito. A dor que me rouba a vida não era apenas uma alucinação onírica.

domingo, 7 de março de 2021

TAUTOGRAMA: MULHER

 

Medusa mundana, moderna maltratada,

Mutilada, meliante, mendiga marginal.

Milenar maledicência moenda mortífera.

 

Multidão medíocre macilenta machista massacra:

“Malditas! Maça mordida, marca maior,

Máxima mancha moral, madona maligna.

 

Muitas miseráveis mentiras mesquinhas

Menosprezaram, massacraram, minimizaram

Mães misericordiosas, mulheres militantes.

 

Mágica maravilha mulher,

Máxima magnânima, majestosa.

Matuta montando milagres,

Merecendo méritos melhores.

sábado, 6 de março de 2021

POESIA - DOR

A dor é o sentir derradeiro

Imune a qualquer mentira.

Não há um alguém que doa

Pela metade, por partes,

Pois só se dói por inteiro.

 

A dor marca em brasa

A humanidade esquecida,

Freme a frágil alma

Ante seu deus maior.

POESIA - FALTA

A flor continua bela

Apesar de uma ou duas

Pétalas que caem.

Mas para a flor é inegável

Que a parte que lhe falta, falta!

Sem mais plenitude.


POESIA - HORIZONTES DE FELICIDADE

Hoje eu não estou bem

Tenho um nó no meio

Um aperto no peito

Uma falta de um monte

De coisas que não sei explicar.

Mas não me cobro em estar pleno

Quando os dias não são fáceis

Estar meio murcho em tempos difíceis

É esperado, previsível e nada anormal.

Insisto mesmo que o ponto de vista não seja

Favorável, pois é preciso crer em novos e

Melhores ares em horizontes de felicidade.

MINICONTO - ERRO DE PROGRAMAÇÃO

 

O corte no seu dedo sangrava, depois de um tempo, percebeu que o sangramento não estancava. Começou a entrar em colapso. Usou uma tonelada de gazes, pedaços de tecido. E numa dessas vezes, enquanto limpava o ferimento, viu um pequeno brilho em sua carne, acreditou ser um pedaço do vidro com qual se cortou. Cuidadosamente analisou o fulgor e com o próprio dedo futucou a ferida, porém o objeto cintilante não saía. Entretido, acabou por cutucar demais o machucado e uma parte da sua carne macia cedeu ainda mais, só então se deu conta, de que não podia se tratar de um caco de vidro. Ignorando os protocolos de segurança e a dor, puxou filetes da sua carne, arrancando-a e pondo os nacos ensanguentados sobre a bancada, descarnou toda a sua mão e metade do antebraço, expondo a luz do dia, uma armação de metal, ao invés, de um esqueleto humano.

quinta-feira, 4 de março de 2021

POESIA - VELA

 

No escuro meu corpo se desfaz.

A chama sobre minha cabeça

Guia a tantos, mas é incapaz

De me salvar.

Afasto medos alheios,

Porém frágil como sou

Com um sopro cruel

Se livram de mim.

quarta-feira, 3 de março de 2021

MINICONTO: SUCO

        
         Eu não sabia se ria ou se chorava, por via das dúvidas, continuei a tomar meu suco, quase engasguei algumas vezes, tomada pelo misto de emoções e sabores tão inocentes. Muitos pensariam ser só um suco de morango superconcentrado, porém o choro estridente e a perninha faltante do meu bebê diziam o contrário.   

terça-feira, 2 de março de 2021

PODCAST - CEMITÉRIO DOS INFINITOS


            Conheçam meu novo podcast, Cemitério dos Infinitos. Onde recito as poesias, que aqui publico.

Cemitério dos Infinitos: Link do Podcast

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

NOVO E-BOOK: O JACINTO E O ROUXINOL

      


                O Jacinto é o Rouxinol é um poema em homenagem aos poemas clássicos. Ele foi escrito durante anos, apesar de ser uma obra extensa. O poema narra a história do pássaro, Rouxinol, e da flor, Jacinto, que disputam a atenção de um homem em seu jardim, mas que acabam numa peleja de ego que dura por anos. Conselheiros dos caos surgem para inflamar a contenda, os deuses observam o embate, até o próprio Satã surge para dar o veredicto final na rixa entre o Jacinto e o Rouxinol. O e-book ainda conta com mais dois poemas: Telefone Público e A Santidade Urbana Sob o Poste.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

POESIA- RESQUÍCIOS DE AFOGAMENTOS

 

Cercado, eu flutuo

Mesmo em águas rasas.

Por toda parte há resquícios

De severos afogamentos,

Por isso, não mais me arrisco

Nas intenções das profundezas.

Na ilusão vagueio, flutuo

Querendo não sentir,

Mas terrivelmente eu sei

Que mesmo na superfície,

Na menor das coisas,

Ainda posso perder o ar.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

POESIA - AUTOANÁLISE

 
Olho nos seus olhos

E reconheço todas as vezes

Em que me traiu.

Eu sempre perdoo,

Mas a marca da traição existe

E nunca é esquecível.

Sei que não posso fugir,

E mais cedo ou mais tarde

O engano virá novamente.

POESIA - PACTOS ROMPIDOS

 

Sou assombrado por ausências.

Olho para lugares

Onde deveriam estar sensações,

Mas só encontro fantasmas,

Arrepios e o vazio nas mãos.

Sou cheio de pactos rompidos

E é horrível que não se possa

Exorcizar tantas ausências

Com um pouco de nada.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

POESIA - REABILITAÇÃO

 
Sempre foi muito fácil

Eu me manter machucado,

Estar sempre dolorido.

Pois só assim eu sentia algo além,

Mas chega um momento

Que manter a doença é exaustivo

E a busca de novos ares

É vital para a cura.

Sem mais querer a dor

Expurgo o pus,

Removo os espinhos

E suturo as feridas.

Não sei se ficarei bem,

Porém estou me dando

A chance de sarar.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

MINICONTO: ITENS PESSOAIS

Minha filha não desgrudava da sua mochila, ela a levava para tudo quanto é lado. No começo eu achei engraçado, mas quando ela começou a conversar com a mochila e a alimentá-la, eu me dei conta de algo estava errado. Esperei ela dormir, a mochila estava envolta por seus braços, um fedor fraco se fazia presente. Eu peguei a mochila com cuidado, o peso dela me espantou. Eu abri a mochila e, para o meu total pavor, dentro dela havia a cabeça em decomposição de outra criança.

domingo, 24 de janeiro de 2021

POESIA - CHUVAS DE JANEIRO

 
Eu queria que em algum momento eu tivesse

Dito as palavras que amarram dois corações,

Que geram uma ligação que brilha sob o sol.

Estúpido, eu me fiz no silêncio da ausência

E o nada tratou de compor dois estranhos.

Passado o momento nunca vivido só idealizado,

Restou-me atado à distância as chuvas de janeiro.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

MINICONTO: AOS QUE ZELAM

 

A mulher gritava no meio da rua pedindo socorro, ela já foi me puxando para dentro da sua casa, explicando que havia um problema. Uma adolescente dormia na sala em meio à confusão. O cheiro de fumaça impregnava o ar. Na cozinha uma panela de óleo fervente estava em chamas, as labaredas incendiavam o pano de prato. Certeiro, eu dei o meu jeito e apaguei o fogo. A garota surgiu assustada na cozinha, creio que sua mãe a despertou. Vendo toda a situação seus olhos encheram-se de lágrimas, e então, ela olhou para o alto, fechou os olhos e sussurrou: “Obrigada, mãe.”

sábado, 16 de janeiro de 2021

POESIA - LAVANDA - THIAGO LUCARINI

 
Os lençóis ainda têm o cheiro de lavanda

Retido nos poros macios da sua ausência.

É uma fragrância frágil que me rouba, já que não sou forte nas noites, e que me faz regar

As flores bordadas, fazendo-as exalar a falta de um jardim em mim.

Levanto-me como uma abelha sem ferrão e voo baixo pelo quarto, abraçado a lençóis de lavanda,

Envolto em flores falsas, velando por um amor que nunca mais terei.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

POESIA : O HOMEM QUE BANHA O MORTO - THIAGO LUCARINI

 O que pensa o homem que banha o morto?

O que pensa o morto que é banhado pelo homem?

Que segredos trocam? Que palavras compartilham?

 

Precisa o morto de tamanha vaidade?

Ser limpo e vestido com tamanha elegância?

(Será tudo isso coisa do homem, do morto

 

Ou pura exigência da fria sepultura?!)

Sepultura que só guarda em teu útero estéril

Coisas limpas e bem vestidas, afinal, dela

 

Não nasce nada, nem morto nem alma.

Não importa a razão final das coisas

Tudo é cíclico, hoje, o homem vivo

 

Banha o morto do momento, daqui a pouco,

Será outro morto, depois, o homem que banha

Será o próprio morto e outro homem vivo o banhará.

POESIA - FERIDA - THIAGO LUCARINI

 

Há uma ferida em mim

Que não é exposta

Nem mesmo está na superfície da pele,

Eu sequer posso vê-la,

No entanto, sinto a sua presença

Às vezes mais forte às vezes mais fraca,

Nunca ausente.

É, certamente, um deus deste corpo,

E como um deus

Um dia ela irá me levar.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

MINICONTO: AO REDOR - THIAGO LUCARINI

 

Meu pai sempre teve dificuldades de entender certas coisas. Eu queria que ele entendesse qual é o seu lugar, que respeitasse o meu espaço, que não invadisse os limites da minha casa, o limiar da minha vida. Hoje, meu pai me observa à margem, e eu tenho a ciência de que foi uma péssima ideia, enterrá-lo na garagem.

MINICONTO: MANDANTE - THIAGO LUCARINI

 

A foto do morto chegou via um grupo de amigos. O homem tinha acabado de ser assassinado numa feira livre, preservado para sempre num último instante de pavor e dor. Assim, que eu vi a foto imediatamente a apaguei. Estranhei quando na manhã seguinte a foto reapareceu, pensando ser um erro de backup, exclui a foto outra vez, mas sempre que eu pegava o celular lá estava a foto no meu protetor de tela, não adiantava apagar, reiniciar. Troquei de celular e não resolveu. Por vezes, olho de relance para o aparelho e vejo que o morto, meu ex, ainda me observa.

MINICONTO: LIGAÇÃO PARENTAL - THIAGO LUCARINI

 

Desde pequena minha filha tem problemas para dormir, assim que começou a falar, dizia: “bicho, bicho” apontando para o canto do quarto, quando eu a colocava no berço. De acordo com que ela foi crescendo, passou a descrever o “bicho” como um ser grande, escuro e disforme, que dizia para ela desistir da sua vida. Eu nunca a consolei, pois aquilo que ela via, era a representação do meu ódio, eu detestava minha filha e todas as noites eu pedia para as forças malditas que a levassem.


MINICONTO: CONJURAÇÃO - THIAGO LUCARINI

Ela encontrou num sebo um livro com uma capa estranhamente ressequida e enrugada, cheia de glifos desconhecidos. Folheou algumas páginas e parou em uma onde havia uma estrela de cinco pontas invertida. Sem pretensão, começou a ler as palavras ali escritas. Antes de terminar a leitura, sentiu um fedor insuportável de ovo podre, e assim que fechou o livro, deparou-se com um homem encantador diante dela, não deixou de reparar que no lugar dos seus pés haviam cascos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

MINICONTO: OBRA ARTÍSTICA - THIAGO LUCARINI

 

        Suas tatuagens coçavam, elas não eram recentes, fator que tornava a coceira descabida. Notou uma vermelhidão ao redor dos vários desenhos, pensou que poderia ser uma reação alérgica tardia. Tudo o que fez para aliviar o incômodo não adiantou. Estava a caminho do hospital quando freou o seu carro de súbito, seus gritos de horror logo se fizeram audíveis. Todo o seu corpo doía insuportavelmente, pois fissuras se abriam por toda a sua pele, suas tatuagens rasgavam sua derme, saltando do corpo, deixando buracos enormes, ganhando vida a partir do seu sangue e carne violada.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

MINICONTO: A MÃO - THIAGO LUCARINI

 

        Acordei com o peso de uma mão apalpando meus pés, ainda sonolento, percebi que ela ia subindo, pensei que fosse minha mãe querendo me acordar, porém num insight me lembrei que meus pais haviam viajado e que eu estava sozinho em casa. E assim que eu me dei conta da situação, a mão agarrou meu pescoço e começou a me enforcar. Me debatendo e com muito alcancei meu celular, a luz de tela iluminou o quarto, e eu ainda ofegante, vi uma mão carcomida sumir por entre as cobertas.